Uma disputa inusitada sobre propriedade de duas fotografias nos Estados Unidos acaba de ganhar mais um capítulo. Para entender essa história é necessário fazer uma pequena introdução histórica. Em 1850 o biólogo suíço Louis Agassiz encomendou retratos de sete pessoas negras e escravizadas que residiam nos Estados Unidos. Os escravos Renty e Delia (pai e filha) estavam entre esses 7 escravos e foram registrados pelo fotógrafo JT Zealy em um estúdio na Carolina do Sul. Os dois retratos foram feitos com um daquerreótipo, a tecnologia fotográfica mais viável naquela época. As fotos foram realizadas para apoiar a teoria do poligenismo que afirmava que as raças humanas tiveram origens diferentes. Os dois escravos foram fotografados nus e de vários ângulos e o objetivo era comprovar que os negros eram pessoas inferiores. Claro que esse tipo de teoria é totalmente desacreditada nos dias de hoje.
Louis Agassiz era um racista dos mais radicais. A primeira vez que viu uma pessoa negra foi em Boston, em 1846, em sua primeira viagem aos Estados Unidos e escreveu para sua mãe como ficou com nojo daquelas pessoas que trabalhavam no hotel onde ficou hospedado. Com essa ideia na cabeça ele abraçou a teoria do poligênese – a teoria de que a vida surgiu de criações separadas – colocando-o em conflito com a noção cristã de uma única gênese. Mais tarde, ele levou essa ideia mais longe, declarando em 1847 que as diferentes raças de humanos eram, na verdade, espécies diferentes, sendo os caucasianos a raça superior. Apoiado por um rico proprietário de escravos, Agassiz recebeu uma bolsa em Harvard para continuar seus estudos e comprovar sua teoria. Claro que isso não aconteceu e esse seria mais um caso de idiotice científica esquecido pela história. Mas, não foi isso o que aconteceu.
Em 1976, enquanto vasculhava um sótão do Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia de Harvard em busca de publicações antigas do museu, a assistente editorial Lorna Condon abriu uma gaveta em um armário de madeira. Dentro, ela encontrou uma série de estojos de couro que continham uma série de daguerreótipos de negros parcialmente ou totalmente nus. Os nomes foram escritos à mão em etiquetas de papel, identificando 7 indivíduos: Alfred, Delia, Drama, Fassena, Jack, Jem e Renty com etnias e ocupações assumidas. Os daguerreótipos representaram algumas das primeiras imagens conhecidas de escravos nos Estados Unidos.
O daguerreótipo foi o primeiro processo fotográfico disponível ao público. Foi inventado em 1839 por Louis-Jacques-Mandé Daguerre e é bem diferente dos processos posteriores com negativo em vidro ou filme. A fotografia conseguida com o daguerreótipo é única e não permite cópia. Ela também é muito frágil. Se ficar bem armazenada e longe da luz a imagem pode durar mais de 100 anos. Por isso que a descoberta das imagens encomendadas por Agassiz é tão surpreendente. São consideradas as primeiras fotografias de escravos feitas nos Estados Unidos e, acima disso, as mais bem conservadas.
Depois de redescobertas, Harvard passou a licenciar o seu uso e elas já apareceram em propagandas de conferências e capas de livros sobre a escravidão, em especial a que contem o escravo identificado como Renty. E é nesse ponto que a coisa virou caso de justiça. Em 2019, uma mulher chamada Tamara Lanier, que afirma ser a tataraneta de Renty, está processando Harvard por causa das fotos de seu suposto ancestral direto. Ela afirma que fez vários pedidos para a Universidade parar de exibir e licenciar a foto de seu ancestral para obter lucro e nunca foi atendida. Além de exigir que não exista mais exploração econômica, ela também está pedindo na justiça que os daguerreótipos originais de Harvard sejam entregues a sua família. Segundo ela: “Por anos, os proprietários de escravos de Papa Renty lucraram com seu sofrimento. É hora de Harvard parar de fazer a mesma coisa com nossa família.”
Depois da apresentação dos argumentos de ambas as partes, a juíza Camille F. Sarrouf do Tribunal Superior do Condado de Middlesex escreveu que, apesar das “circunstâncias horríveis” em que as fotos foram tiradas, pelo fato de os dois retratados não serem os proprietários das imagens quando foram tiradas, seu descendente Lanier também não é proprietária das fotos. Consta na decisão: “Reconhecendo plenamente o impacto contínuo que a escravidão teve nos Estados Unidos, a lei, como está atualmente, não confere um direito de propriedade ao assunto de uma fotografia, independentemente de quão questionáveis possam ser as origens da fotografia. É um princípio básico da lei comum que o assunto de uma fotografia não tem interesse no negativo ou em qualquer fotografia impressa a partir do negativo.”
No fundo, se trata apenas de uma questão de direito de propriedade. No Brasil, a questão do direito de imagem seria levado em conta, mas as coisas funcionam um pouco diferente nos Estados Unidos. Aqui é apenas uma questão de propriedade. Existe uma carga emocional muito grande no caso inteiro, mas para a justiça isso não é levado em conta. Infelizmente, para a família de Lanier, as fotos continuarão sendo utilizadas pela universidade da forma que foram licenciadas até hoje.
Lanier pretende apelar da decisão.
Fonte: Petapixel
Uai, não era pra estar em domínio público j’?
pelo que pesquisei, o lance de domínio público nos Estados Unidos é uma salada que pouca gente entende e, boa parte disso, por conta da Disney tentando jogar cada vez mais para o futuro a entrada do Mickey em domínio público. Por lá, tudo o que foi publicado depois de 1922 entra em domínio público apenas depois de 95 anos. No caso dessas fotografias tem uma pegadinha. A Lei americana diz que o prazo do domínio público passa a valer depois da primeira publicação onde houve a inserção do direito autoral na obra. Ou seja, a primeira vez que as fotos foram publicadas por Harvard, com a indicação do autor das fotografias, foi na década de 70. O direito moral é do autor da obra, mas como ele fez as fotos sob encomenda de um pesquisador de Harvard, o direito patrimonial pertence à universidade. Esse foi meu entendimento 🙂